"AMADEO(S)" – Amadeo de Souza- Cardoso, pelo Teatro Art´Imagem em 2025
Lembrar a obra e a vida do pintor modernista Amadeo de Souza-Cardoso e prestar homenagem a sua mulher Lucie Pechetto (Lyon, França 1890 – Paris 1987) que conheceu em Paris em 1908 e casados no Porto em 1914, que durante 69 anos depois da morte do marido em 1918 guardou e ajudou a divulgar a sua obra em Portugal e no Mundo até à sua morte com 87 anos de idade.
Quisemos fazer subir ao palco e acompanhar Amadeo de Souza-Cardoso, mais dois Amadeos, o primeiro Amedeo Mogdilliani (Livorno, Itália 1884 - Paris, Hospital de la Charité 1920) pintor e escultor e que foi amigo de facto do pintor português durante a sua estadia em Paris e o grande Amadeus W. Mozart (Salzburgo, Áustria 1756 – Viena, 1791) uma presença improvável dado que viveu na segunda metade do século 18, mas que a arte pode juntar, aproveitando algumas das sua árias musicais e juntando-as às musicas originais e de outras proveniências que são ouvidas na peça. Por isso o título da peça "Amadeo(s)", o primeiro nome era o mesmo de todos, foram grandes mestres nas suas artes, morreram muito novos em condições dramáticas e tinham pouco mais de 30 anos de idade...
Uma experiência teatral que se propôs fazer uma biografia fragmentada da vida e obra de Amadeo de Souza-Cardoso. Uma incursão e leitura cénica das suas pinturas, desenhos e caricaturas, dialogando em quadros cénicos com algumas das suas obras mais icónicas ("A Procissão", "Cavalo/Salamandra", "Os Galgos" e seus coelhos saltitantes, "O Parto da Viola", "Quixote", "Moinho", "Mulher", "Chalupa", "Mulher Degolada" e "Menina dos Cravos", entre outras) que permitem entrelaçá-las com a sua vida, desde a sua infância e primeira juventude entre Manhufe/Amarante, onde nasceu (1887), era Portugal ainda uma monarquia. Foi aprender as primeiras letras junto à Igreja de S. Gonçalo, situado no local onde hoje está o Museu Municipal e que leva o seu nome.
Uma montagem cénica interpretada por uma actriz e dois actores que se desdobram em várias personagens, cores e paisagens que povoam a obra pictórica de um dos nossos pintores mais emblemático do modernismo e "esquecido" em Portugal durante mais de 50 anos e que acompanham vários episódios da sua vida, uns reais e outros ficcionados, mais as relações com amigos e familiares, artistas conhecidos e homens e mulheres comuns, e que Amadeo passou para os seus quadros utilizando as diversas fazes porque passou a sua pintura. Em cena estarão objectos e estruturas, cadeiras, cavaletes e várias cópias de quadros de Amadeo e que, manipulados pelos comediantes contarão as várias histórias e personagens que compõem a dramaturgia fragmentada da peça, praticamente sem o uso de linguagem dialogada ou utilização de grandes frases, através do movimento, expressão corporal e utilizando pequenos vocábulos, interjeições, monossílabos, ditongos, risos e omnatopeias em diálogo com a música e a sonoplastia, pelo desenho e jogos de luz e pelos adereços e outros objectos em palco.
Amadeo passava temporadas de férias em Espinho, onde a família tinha uma casa e para lá se deslocava frequentemente. Nessa última cidade morreria tragicamente, ainda com 30 anos (25/10/18), vítima da epidemia da febre tifoide (gripe espanhola) que começara a grassar na Europa nos finais da Primeira Grande Guerra Mundial (1914- 1018), menos de um mês antes desta terminar (11/11/1918) com a morte de cerca de 20 milhões de pessoas, entre eles quase 10.000 portugueses dos 200.000 mobilizados desde em 1916.
Antes de completar 5 anos de idade, o país estava em convulsão política permanente e tinha sido coroado em 1889 D. Carlos I, por morte de seu filho D. Luís e estala nova crise com o "Ultimato Inglês" em 1890 e a Revolta Republicana de 31 de Janeiro de 1891, na cidade do Porto, que fracassou.
Até aos 15 anos (1901), viveu Amadeo entre Amarante e Espinho com o Porto de permeio. Enquanto menino brincou com seus irmãos e irmãs, mais os filhos dos trabalhadores rurais ao serviço de seu pai, abastado proprietário e um grande exportador de vinho verde. Andou na escola, rabiscou e desenhava já nos livros e cadernos de estudo, bem como nalguns muros, paredes e armários da casa, admoestado por sua mãe e professores e o desejo de pintar ia crescendo e tornando-se uma determinação, muito contrariada pela família, de cariz conservadora, católica praticante e apoiante da monarquia vigente, fortemente abalada pela luta política dos partidos republicanos em ascensão.
Crescia Amadeo e aprendia a cavalgar, passeava-se pelo Marão e ia à caça com os seus galgos. Refrescava-se no rio Tâmega, gostava de touradas, frequentava festas e romarias tocava viola e cavaquinho, cantava e dançava, e assistia devotadamente às procissões, conhecendo lugares, lendo romances de cavalaria, descobrindo as flores e as plantas. Gosta de ver pássaros a voar e a chilrear, gosta de brasões, heróis e santos. Brinca ao Carnaval e festeja os santos populares joaninos.
Em Espinho conheceu e banhou-se no mar, brincou e conheceu os filhos dos pescadores, assistiu às partidas e chegadas dos barcos de pesca e viu o peixe saltar nas redes, ajudando a puxar os barcos para terra. Entrou e enamorou-se das casas e das janelas dos homens do mar e das vareiras, que mais tarde pintaria.
Em 1902 vai estudar para Coimbra, mas os estudos não correram bem e seu pai, de castigo, manda-o trabalhar em 1903 como caixeiro na famosa "Fábrica Confiança", em plena baixa do Porto na Rua de Santa Catarina, até que em 1905 seu pai aceita finalmente que ele se matricule na Real Academia de Belas Artes de Lisboa para estudar. Parte para a capital, de que não gostará e desistirá logo do curso, convencendo a família a ir para Paris com a condição de estudar arquitetura, partindo de comboio para França no dia em que completa 18 anos em 14/11/06. Durante os 18 anos que vivera em Portugal, sentiu-se sufocado.
Paris era uma festa, foi o deslumbramento, a cidade era o centro do mundo das artes, confluindo vários movimentos artísticos nas artes plásticas, na música, na dança, no teatro. O cinema dava os seus primeiros passos, a velocidade tomou conta do mundo, o comboio e o metro de Paris, as novas bicicletas, as chaminés das fábricas, a industrialização, os transportes públicos iam sendo substituídos por motores e a tração animal ia perdendo terreno com o aparecimento dos novos automóveis. Paris era então o centro cultural mais fervilhante e disruptivo da Europa e das Américas e tinha começado o futuro.
Amadeo deixa num instante o curso de arquitetura e convivendo com artistas exilados portugueses, alguns mesmo de Amarante, começa a frequentar cursos de pintura, monta o seu atelier em Montparnasse e daí em diante, nunca mais deixou de pintar. Em 1907 e 1908 envia já para Portugal alguns desenhos e caricaturas que serão publicados pelo "Primeiro de Janeiro" do Porto e na revista "Ilustração Portuguesa". É o ano do Regicídio em Lisboa e é com desgosto e tormento que toma conhecimento do assassinato do Rei D. Carlos e seu filho herdeiro do trono. É então aclamado rei de Portugal, D. Manuel II, que o artista muito admirava e pintaria o seu retrato em finais de 1908 e início de 1909.
Também nesse ano de 1908 conhece Lucie Pechetto, uma rapariga francesa nascida em Lyon de origem italiana e que por ter morado no Brasil, falava português. Enamoraram-se e desde então ela acompanhou-o sempre na vida, mesmo à distância, correspondendo-se quando ele visitava Portugal, o que fazia muitas vezes. Parece mesmo, e este é um dos muitos segredos da vida do pintor, que tiveram um filho, desconhecendo-se seu nome e paradeiro, e que possivelmente teria sido dado para adoção.
Em 1910, ano em que em Portugal e para sua tristeza se proclama a República na Revolução de 5 de Outubro em Lisboa, conhece o pintor italiano Amadeo Modigliani (1884-1920) já famoso então e fazem uma exposição conjunta no ano seguinte, em Outubro de 1911 no Atelier de Amadeo, situado então no "Quai d'Orsay", Rue Colonel Combes. Durante os sete anos que viveu em Paris pintou furiosamente e conviveu com os maiores génios da pintura universal, apresenta as suas obras em várias exposições em Paris, Berlin, Bruxelas e em várias cidades estadunidenses, nomeadamente Nova Iorque. Diz de si mesmo e da sua pintura "Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram, nós os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco, mas nada disto forma uma escola".
Em 1914, de regresso para umas férias em Manhufe a Primeira Guerra Mundial é declarada, enquanto visitava Antoni Gaudi em Barcelona e porque a Alemanha e o Império Austro- Húngaro invadem a França, resolve regressar a Portugal com Lucie que o acompanhava e casa-se na Igreja de Santo Ildefonso, na Praça da Batalho do Porto, por imposição de seu pai que não o deixaria entrar em casa, enquanto não legalizassem a sua situação pela Igreja.
Nos últimos quatro anos que esteve em Portugal, sempre esperando regressar em Paris e vivendo com Lucie, Amadeo passa a vida a pintar e só se interessava pela sua arte. Realiza duas grandes Exposições em Lisboa e no Porto. Não lhe agradava a vida política em Portugal e continuava a ser monárquico enquanto os vários governos republicanos entram na Guerra e o país perde milhares de vidas e fica em bancarrota, ao mesmo tempo que a epidemia da gripe espanhola aparece em meados de 1918, matando o pintor no seu refúgio em Espinho, e continua pelo ano de 2019 fazendo outras milhares de vítimas no país e milhões no mundo.
Em 1920, dois anos depois da morte de Amadeo, Lucie regressa a Paris e cuida da obra de Amadeo, morrendo em 1987, com 97 anos de idade.
A peça começa e termina com duas alegorias.
Logo no inicio a morte de Amadeo em Espinho e termina com um recordação de Lucie em Abril de 1974, onde tinha voltado ao atlier de Paris com que havia vivido com Amadeo. Sabe da Revolução do 25 Abril através da televisão, tendo acompanhado as peripécias e a alegria que transbordou para as gentes e ruas das cidades portuguesas, pela liberdade conquistada. Lembra-se então de uma pintura que seu marido havia feito e gostava muito e pareceulhe uma espécie de antevisão feliz do que se passou agora no país de seu marido, ela era agora "A Menina dos Cravos" da Revolução de Abril e sentia-se feliz como os portugueses.
José Leitão - Ideia, guião e encenação 17/1/2025